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Bonde

Resgatem nossos bondes

Por LÉA TIRIBA (professora da Escola de Educação da Unirio). Publicado na seção Opinião, do Jornal O GLOBO, edição de 10/10/2011.

Emocionados com a recente tragédia, perplexos com o comportamento irresponsável, cínico e frígido do governo do estado, seguimos expressando nossa tristeza e indignação, em sucessivos atos e audiências públicas, cultos religiosos, concentrações nos largos ou em pequenas reuniões.

Santa Teresa é o único bairro do Brasil em que o bonde é meio de transporte e elo mais forte da identidade de seus moradores. Cantado em prosa e verso, cartão-postal do Rio, ele circula entre nós há 115 anos. Em 31 de dezembro de 1970, quando foram desligadas as estações que forneciam energia para os bondinhos que ainda restavam na cidade, o nosso seguiu nos trilhos. Não por milagre, mas por obra corajosa e subversiva de seus funcionários, que clandestinamente puxaram cabos, fizeram um “gato” e asseguraram que ele continuasse circulando.

Por meio da Associação de Moradores, a AMAST, em 25 de março de 1988 conquistamos o tombamento do serviço de bondes: protegido pela lei, ele não pode parar. Entretanto, mantê-lo ativo e seguro, sempre exigiu inúmeras mobilizações. Em 2004, quando o Banco Mundial (Bird) liberou R$22 milhões para a reforma total do sistema, 14 bondes foram levados a Três Rios, para restauração. Anos depois, sem consulta aos moradores ou ao patrimônio histórico, nos devolveram um VLT travestido de bondinho: ele não fazia curvas, tropeçava nos trilhos, apresentava problemas nos freios e acabou matando uma jovem professora. Como a atual, esta foi uma tragédia prévia e publicamente anunciada por nossa Associação de Moradores. Conscientes de que técnicas e tecnologias antigas são mais eficientes, duráveis e estáveis do que a maioria das invenções ditas “modernas”, perguntávamos: por que jogar fora um sistema que, há mais de cem anos, se mostrava eficaz?

Agora, quando a falta de manutenção dos tradicionais bondinhos causou a morte do Nelson — nosso querido motorneiro — e de seis turistas, o governo do estado fala em privatização. Entretanto, num contexto planetário de mudança da matriz energética baseada na queima de combustíveis fósseis para outras que não agridam o meio ambiente, o sistema de bondes é um exemplo que deve ser democratizado, não privatizado. Os turistas são bem-vindos a viajar conosco, mas não aceitamos que se torne prioritariamente turístico, isto significaria exclusão social.

Em tempos de preparação da cidade para a Copa do Mundo, serão os investimentos orientados apenas pelo lucro? Haverá ouvidos sensíveis à ideia de que, preservada, Santa Teresa poderá ser exemplo de bairro sustentável? Por quanto tempo as autoridades seguirão ignorantes em relação à importância estratégica de Santa Teresa, APA que é porta de entrada de uma das maiores florestas urbanas do planeta?

Somos pela cultura, mas não a consumista. Somos pelo turismo, mas não o de massa. Não estamos interessados num progresso que é predador das culturas locais, que quer vender nossas ruas em troca de nossa qualidade de vida. Queremos a volta ao tempo em que o intervalo entre as viagens era de apenas 10 minutos e os moradores acertavam seus relógios orientados pela passagem do bonde. Queremos um sistema que integre o bonde a outros meios de transporte de toda a região metropolitana. Queremos a constituição de uma empresa pública para gerir o sistema com eficiência e visão social.

Se as definições constitucionais asseguram a gestão democrática do país, dos estados, das cidades, temos o direito de participar de todo e qualquer projeto relativo ao lugar onde vivemos. Com esta convicção seguiremos buscando o apoio de brasileiros e estrangeiros “cariocas de coração”: poetas, seresteiros, intelectuais, políticos, homens e mulheres de boa vontade e de bom-senso! Com esperança, seguiremos lutando pelo direito de ter o bonde circulando em nossas ruas, poetizando as nossas vidas, alegrando os nossos corações.