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AMAST

Mázinho

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            Moro na encosta de um morro. A rua que passa defronte à minha casa avança sobre a escarpa, sustentada por uma espécie de escoramento de concreto que forma um abrigo contra sol e chuva. Tal oportunidade não podia passar despercebida à legião de sem teto que habita a nossa cidade maravilhosa. Costuma utilizar o refúgio tanto o queimador de crack como o cidadão honrado à cata de um pernoite barato. Com alguns a gente puxa dois dedos de prosa, claro, a conversa sempre termina com um pedido de empréstimo, mas aí a gente sai fora e desconversa.

Entre os moradores do abrigo teve um casal que passou lá muito tempo. Ela tinha sido mulher bonita e vistosa. Quando a conheci, no entanto, já estava acabada apesar dos trinta e poucos anos. Muita cachaça, muita briga, tinha perdido os dentes da frente, e, para piorar, acidentou-se, quebrou a perna, engessou, mas numa das brigas, quebrou o gesso e ficou assim mesmo, capengando. O casal volta e meia pedia para usar a água da minha torneira, depois passaram a pedir álcool para o fogão, algumas vezes dei, mas depois, desconfiado que a serventia era outra, passei a negar. Um dia sumiram. Vim a encontrá-los, meses depois, já separados. Ambos tinham parado de beber. Ela tinha uma filha com a qual, no entanto, não se dava. De qualquer maneira tinha arrumado um canto para ficar. Ele tinha arrumado um lugar de toma-conta de um templo evangélico e, ainda de quebra, tinha montado uma barraquinha onde vendia beiju. Estava irreconhecível, camisa de manga comprida, calça com vinco e óculos escuros. Quando, depois de alguma hesitação, o cumprimentei, não me deu confiança. Apenas acenou com a cabeça, respeitoso.

Mas a história que eu quero aqui contar é a do Mázinho, o sem-teto com o qual, de longe, maior amizade fiz. Mázinho tinha sido mecânico de automóvel e, segundo me disseram, dos mais habilidosos. Quando o conheci ainda carregava uma maleta com algumas ferramentas com as quais fazia pequenos reparos na vizinhança garantindo assim os tragos da branquinha que era a sua perdição. Depois, com o tempo, as ferramentas dispersaram-se e viraram marcas da sua via crúcis. Ficou uma chave de fenda ali, no local que um tropeço o levou ao chão e um alicate acolá, no pé do poste que por algum tempo o sustentou.

Mazinho era um bom papo. Inteligente, falava e desenvolvia bem os pensamentos. Tinha algo da ingenuidade de uma criança e era provido de um humor terno, meio encabulado. Ria principalmente das suas desventuras. Dei-lhe muitos conselhos. Não seguiu nenhum.

Faz poucos dias o encontrei. Parou de beber e deve estar pela casa dos setenta, para contestar aqueles que, como eu, diziam que ele não passaria dos cinqüenta. “Como é Mázinho, e a vida?” foi o que eu disse à guisa de cumprimento. “Vou levando” foi a resposta e desandou a descrevê-la. Mora em Caxias na casa de uma filha com a qual, no entanto, não se dá. “Vivem todos às minhas custas” foi o comentário que fez. Mázinho é aposentado e sustenta a filha mais velha, o genro que é viúvo com duas filhas do primeiro casamento e, de quebra, outra filha mais nova, deficiente mental. “Todo mundo desempregado. E ainda por cima me tratam mal, me desrespeitam. Até a geladeira que eu comprei meu genro vendeu, para arrumar uns trocados.”

Para ver se desanuviava o ambiente perguntei: “E o que é que você está fazendo por aqui?” “Vim passear.” “Vem sempre?” “Não, só de vez em quando.” Mázinho contou que por uns dias tinha arrumado um lugar onde ficar, numa comunidade vizinha. “Lá todo mundo me conhece. Até arrumei um prato de comida hoje.” Não consegui me conter e tasquei outro conselho: “Mas se em Caxias está tão ruim, porque é que você não muda para cá? Traz a aposentadoria, aluga um barraco e, de quebra, se livra da parentada.” Mazinho olhou para o chão e disse encabulado: “Não dá mais. Estou muito velho. É melhor eu ir levando.” Deu uma risada e, para arrematar, me pediu dois reais para um café.

Depois em casa eu pensei. Que é que eu entendo da vida do Mázinho? Na comunidade arrumam um prato de comida hoje, mas e depois? E quem segura a barra se ele ficar doente? E as filhas dele, as netas, como é que ficam? E aquela que é doente mental, quem cuida? Depois, as brigas na família muitas vezes não são problema, são solução. Melhor mesmo era ir levando….

 

Cláudio Thomas Bornstein