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AMAST

O Bando e a Tribo

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untitled1A história da organização política é a transição do bando para a tribo.

Era uma vez um bando de gorilas. Como se sabe, em um bando primata o poder é altamente centralizado. Um exemplo na cultura popular é o Kerchak do Tarzan (Disney, 1999), patriarca do bando que o adotou. Um líder assim não admite contestação e a participação de todos passa pela sua aprovação.

Esta estrutura tinha limitações evidentes e, para sobreviver, o bando primata foi evoluindo. Passaram apenas cinco milhões de anos, (não mais, diz Gould), até que ele em outra época se tornou a tribo indígena. Na maior parte das tribos indígenas, o cacique faz recomendações após conversar com todos e seu poder é de influencia e persuasão – a decisão propriamente dita é feita por consenso, muito raramente o consenso é impossível e votam. O cacique, salvo emergências, não força sua vontade sobre ninguém, ele persuade com sua sabedoria e senso prático; só o consenso tribal tem poder. Isso é uma generalização, claro; não existem ‘os índios’, existe cada nação indígena, são centenas de línguas e civilizações neolíticas diversas.

Essa história também está por trás de todas as organizações políticas, cada uma representando um momento desta trajetória. Algumas são verdadeiros exemplos do atraso e do ‘bando’, como a maioria das associações comerciais e federações esportivas. Por exemplo, a CNC, antiga Confederação Nacional do Comércio, uma caixa-preta como todo o Sistema S (Senac, Sesc, CNC, etc.) que sozinho bebe 145 milhões por ano do dinheiro público – com contas reprovadas pelo TCU e sob frequente acusação de malversação por ex-diretores – tem o mesmo presidente há 30 anos! (O argumento em sua defesa é sempre e inevitavelmente o trabalho de capacitação do Senac; simples, extingue-se o Sistema S inteiro com exceção do Senac. Ou então abre-se a caixa-preta). Da CBF do ‘renovanão’, nem se fala… (‘Não vai ter Copa’ não deixou de ser uma resposta tardia ao ‘Ame–o ou Deixe-o’ literalmente alienante, o nacionalismo sintético, do País do Futebol de 1970. Os tristes 7 a 1 foram uma grande antiCopa que nos devolveram à seriedade).

Outras organizações são exemplos do avanço na transição para a ‘tribo’ como, por exemplo, a ONU. E ainda mais avançadas que a ONU são a WIPO, talvez o mais benevolente dos organismos internacionais; a ISO com seu processo coletivo de elaboração de normas; a própria comunidade científica, com sua revisão-pelos-pares.

Bom, e as entidades de base?  São os sindicatos, grêmios, CAs e DCEs, associações de moradores, e todas as entidades que representam pessoas diretamente (ONG não é entidade de base). Estão em geral por aí entre a metade e nove décimos do caminho.

Muitos perigos sempre espreitaram as entidades de base em geral, forças obscuras ligadas ao baixo fisiologismo político (para, por exemplo, mitigar as ações reivindicatórias e ‘acabar com os protestos’, ou tentar criar currais partidários), interesses econômicos locais, ocasionalmente a bandidagem, que volta e meia tentam aparelhar as associações. Às vezes os pequenos partidos de esquerda também tentam as aparelhar, em particular as estudantis, para promoverem suas ideologias, um aparelhamento quase benigno quando comparado aos anteriores, Mas para zelar pelos interesses legítimos dos seus representados, quem os represente genuinamente sem interesses ocultos ou ‘agendas’ é o melhor – porém, podemos almejar algo ainda maior, que é a evolução cívica da sociedade.

Por exemplo, conhecemos uma associação, fundada nos anos 80, que gozava de imenso prestígio dentre a classe média educada; seu ex-presidente histórico mais conhecido recebeu e ainda recebe inúmeras homenagens, incluindo a Medalha Pedro Ernesto. Na luta pela qualidade de vida no bairro, além das ações de conservação histórica, sua linha de ação principal, e pelos serviços públicos de qualidade – transporte, segurança, saneamento – seria conveniente também buscar parcerias para revitalizar o moribundo pequeno comércio local de consumo residencial: padarias, mercados, bancas de jornal, farmácias, etc.

Hoje, ela concentra sem sombra de dúvida a maior capacidade técnica que jamais teve – e é respeitada pelas autoridades e a grande imprensa. Porém, para aumentar ainda mais sua capacidade de mobilização e incluir os jovens, os mais críticos dos cidadãos, será necessário reconquistar a classe média aos níveis da gestão do Velho Cacique, através de um amadurecimento político que será na verdade um retorno à práxis da época – igualitária e aberta – só que com uma capacidade técnica maior, até porque o mundo ficou muito mais técnico. Este esforço já está em curso e deve ser sempre aprofundado. Quanto mais inclusiva e participativa, maior, com mais ‘pernas’ e mais forte ela será.

Na vida urbana atual, as pessoas se sentem isoladas e dedicam horas por dia às mídias sociais; algo lhes está faltando, algo claramente muito grande, tanto em convivência quanto em discussão inteligente, que se tenta infrutiferamente preencher. E ao substituir de forma enganosa a verdadeira convivência, elas se tornam ‘mídias antissociais’.

Somos cercados por círculos concêntricos que começam no indivíduo, depois a família nuclear, amigos, colegas, vizinhos, parceiros comerciais, a sociedade em geral. Mas há uma imensa lacuna entre os círculos dos ‘amigos’ e da ‘sociedade em geral’ que o trabalho e o comercio, com seu viés utilitário e instrumental, não preenche. A família e amigos proporcionam uma convivência emocional, que os animais também têm; enquanto que o trabalho e o comércio são utilitários para a sobrevivência, ou seja, também basicamente suprindo necessidades amimais e sempre em tom frio e egoísta; o convívio e a esfera mais exclusivamente humana estão na convivência científica ou artística (para poucos) e no meio-termo entre o adjacente amigo e o distante compatriota, que é o companheiro de ação cívica ou ocasionalmente de militância. O contato racional e moral que a política pura e cívica proporciona.

Em uma sociedade educada e informatizada, a Democracia Participativa complementa, enriquece e aperfeiçoa a tradicional democracia representativa. A delegação de poder que o povo faz a seus representantes não precisa mais ser tão absoluta quanto o era na época pré-industrial, em particular ao poder legislativo, hoje tão alienado, egoísta e blindado até mesmo de qualquer tentativa de representatividade real – e essa retomada está prevista nos Artigos Fundamentais da Constituição. Essa é a transição do ‘bando’ para a ‘tribo’ em nível macro, nacional.

A prática cotidiana da democracia exige um crescimento pessoal civilizatório, em racionalidade e em paciência. Às vezes, muuuuita paciência, mesmo.  Há um Kerchak, um pequeno tirano, em todos nós. Há a tendência de se querer ignorar ou calar quem de nós discorde. A democracia, por definição igualitária, exige flexibilidade e paciência exatamente no mesmo grau em que ela for heterogênea: quando todos pensam igual, é muito fácil. A evolução institucional depende do crescimento pessoal de cada participante e, assim, é uma grande escola para todos. Essa é a transição do ‘bando’ para a ‘tribo’ em nível micro, individual.

O que todo bairro e toda coletividade merecem é um raio de luz cívica na escuridão anônima da política partidária, que se apropriou do sopro da vida política e relega ao cidadão o papel de um espectador otário. Como já foi a tribo, se esforçam hoje para voltarem a serem as diversas entidades de base: um verdadeiro coletivo, onde todos os cidadãos de boa vontade participam livremente em pé de igualdade, através das mais diversas comissões, geográficas (Conselhos de Ruas) e nas temáticas (Comissões de Trabalho) – o primeiro tipo de comissão foi fortalecido durante a gestão que se encerra e o segundo o será, espera-se, na a seguir – não se esquecendo da nossa Brigada Ambiental e as outras brigadas que ainda poderão ser formadas. Cada pessoa contribuindo com o que tem para dar em termos de tempo e capacidade, sem ‘pensamento único’ e apenas alguns ideais em comum. Onde todo cidadão de boa vontade pode encontrar seu espaço para a ação – e espaço para a sua ação. Não há a necessidade de fragmentação em ONGs e associações diversas, cada ativista tendo que criar a sua própria, havendo espaço para todos em uma tribo maior que os abrigue e apoie.

Cabe às pessoas acreditarem e cobrarem, doarem seu tempo, apoiarem criticamente. Prevalecerão o debate racional e o consenso possível, o respeito e a paciência, o idealismo e a honestidade, a visão e a esperança. E como uma grande tribo, a associação civilizatória nos levará a um bairro e um cotidiano, uma cidade e um mundo – uma vida urbana e uma prática política – melhores, menos contraditórios e mais plenos.